A Natureza da Estupidez: Uma Força Perigosa e Subestimada

Comportamentos irracionais são analisados em diversas disciplinas, mas o estudo da estupidez coletiva permanece negligenciado, raramente recebendo a atenção devida, especialmente da imprensa e dos campos jurídico, político e acadêmico, que por vezes se mostram contaminados por ela. Alguns pensadores, no entanto, têm contribuído para o tema: Dietrich Bonhoeffer, Carlo M. Cipolla, Hannah Arendt, Robert Musil, Byung-Chul Han e Vladimir Safatle.


O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, preso e executado pelo regime nazista, identificou na estupidez uma deformação da personalidade que se manifesta especialmente em contextos de massas. Para ele, a estupidez não é um defeito inato da inteligência, mas uma falha de julgamento e caráter. “Contra a estupidez estamos desamparados”, escreveu em suas anotações no cárcere. O estúpido, segundo Bonhoeffer, é incapaz de ouvir argumentos, pois está “completamente satisfeito consigo mesmo”, blindado contra críticas e fatos. Nesse sentido, a estupidez não é a ausência de razão, mas a renúncia voluntária ao pensamento — uma rendição à autoridade, à repetição e à adesão cega. Bonhoeffer observou na Alemanha nazista como as massas, por meio dessa estupidez ativa, entregaram o poder a líderes totalitários sem considerar as consequências.

Bonhoeffer identificou a passividade e a conformidade social como causas principais da estupidez. Quando indivíduos se entregam cegamente às normas e expectativas de um grupo, perdem a capacidade de pensar de forma independente. Ele sugere que a estupidez não é um problema psicológico inato, mas sociológico, influenciado por circunstâncias externas e exacerbado em grupos numerosos. Em massa, indivíduos podem adotar os argumentos de quem está no poder como se fossem seus próprios pensamentos, tornando-se estúpidos e fortalecendo o poder crescente.

O historiador econômico Carlo M. Cipolla, em seu ensaio satírico e penetrante As Leis Fundamentais da Estupidez Humana (1976), propõe uma tipologia comportamental baseada no impacto das ações humanas. A “Lei de Ouro” de Cipolla define o estúpido como aquele que “causa perdas a outra pessoa ou grupo sem ganhar nada, ou até perdendo”. Diferentemente do “bandido”, que age de forma estratégica e previsível, o estúpido é irracional e imprevisível. Cipolla argumenta que sua presença é constante em todas as camadas sociais e que, por ser subestimada, a estupidez exerce mais influência do que se imagina. A Primeira Lei já alerta: “Sempre e inevitavelmente subestima-se o número de estúpidos em circulação.”

Essa abordagem amplia o conceito de estupidez para além de um juízo intelectual. Ela se revela como um comportamento eticamente desestruturado, socialmente destrutivo e politicamente irresponsável. Assim, é possível examinar certas ações no cenário político brasileiro que encarnam essa forma de estupidez — não como ignorância factual, mas como falência moral ativa. Dois exemplos ilustram esse ponto: uma frase de Jair Bolsonaro e uma ação de Eduardo Bolsonaro.

Em 28 de abril de 2020, ao ser questionado sobre o crescente número de mortos pela Covid-19, Jair Bolsonaro respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. A declaração, proferida em meio a uma tragédia sanitária, é emblemática da estupidez moral descrita por Bonhoeffer e Cipolla. Não se trata de desconhecimento técnico sobre a pandemia, mas de ausência de empatia, responsabilidade e respeito pela dor coletiva. A insensibilidade manifesta-se como desdém, como se o sofrimento alheio fosse um detalhe irrelevante no cálculo político. Essa conduta revela a recusa em adotar um posicionamento ético diante do sofrimento humano.

Outro caso emblemático envolve Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do então presidente da República, que viajou aos Estados Unidos para solicitar apoio de autoridades estrangeiras contra instituições democráticas brasileiras, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Essa conduta, longe de ser apenas um erro político ou excesso retórico, carrega os elementos da estupidez moral. Ao buscar auxílio externo para interferir em assuntos internos, Eduardo Bolsonaro demonstrou:

1. Desprezo pela ética pública, ao priorizar conveniências ideológicas e familiares sobre os compromissos republicanos exigidos por seu cargo;
2. Distorção do patriotismo, ao agir como agente de pressão contra o próprio país, invertendo o ideal democrático em nome de um falso ideal de “liberdade”;
3. Aversão ao dissenso, ao tentar deslegitimar o contraditório não pelo debate institucional, mas por meio de intervenção externa.

Hannah Arendt, ao tratar da banalidade do mal no julgamento de Adolf Eichmann (1961), mostra como indivíduos aparentemente comuns, ao abdicarem do pensamento crítico e do julgamento moral, tornam-se capazes de atos destrutivos. Eichmann não era um monstro — era um burocrata. Essa abdicação do pensamento o tornou perigoso. O mesmo se aplica quando um parlamentar brasileiro tenta sabotar as instituições que garantem sua existência política: a ação é destrutiva não por ser abertamente tirânica, mas por parecer “normal” ou até “patriótica” sob o manto da ideologia.

Robert Musil, em O Homem sem Qualidades, afirma que a forma mais perigosa de estupidez é aquela que “se alia a causas”. Essa estupidez atua com zelo missionário, arrogância e falsa superioridade moral. É o tipo de estupidez que confunde certeza com verdade, convicção com razão, patriotismo com fanatismo. Ao acusar o STF e o TSE de autoritarismo enquanto solicita ajuda internacional contra eles, Eduardo Bolsonaro exibe uma confiança cega que revela ausência de reflexão. Ele age como quem acredita lutar pelo bem — e é justamente aí que reside o perigo. A estupidez mais destrutiva, segundo Musil, é aquela que se julga virtuosa.

Em A Sociedade da Transparência e A Agonia do Eros, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han analisa como o discurso político contemporâneo se converteu em um espetáculo de autoafirmação. A política deixa de ser um debate racional e torna-se performance, onde o que importa não é a verdade, mas o “engajamento” — os likes, os gritos, a reafirmação de identidade. Eduardo Bolsonaro, ao utilizar redes sociais e eventos internacionais para reforçar slogans antissistêmicos, age menos como representante institucional e mais como um influencer ideológico. Para Han, essa transformação é uma forma de estupidez contemporânea: pensar não para compreender, mas para acumular capital simbólico.

Vladimir Safatle, em O Circuito dos Afetos, argumenta que o autoritarismo atual é movido por afetos como ressentimento, pulsão punitiva e desejo de destruição do outro. Ao se apresentar como “filho do mito”, repetir slogans como “STF é inimigo” e performar a defesa da “liberdade” sem mediação institucional, Eduardo Bolsonaro encarna essa liderança que deseja o colapso. Ele não oferece soluções — oferece gozo simbólico na ruína do outro. A estupidez aqui se realiza como um prazer mórbido no desmonte da democracia.

As redes sociais são um terreno fértil para a proliferação da estupidez coletiva, moldando comportamentos e percepções em múltiplos níveis. Os algoritmos, o “cérebro invisível” das redes sociais, são projetados para maximizar o tempo de permanência do usuário, apresentando conteúdos que corroboram seus interesses e interações anteriores. Esse mecanismo cria as “bolhas de filtro”, onde os usuários são expostos a conteúdos que reforçam suas crenças, reduzindo a diversidade de opiniões e dificultando o acesso a perspectivas mais amplas.

As bolhas de filtro frequentemente se transformam em “câmaras de eco”, ambientes em que opiniões semelhantes são constantemente reforçadas, criando um ciclo vicioso de validação mútua. Isso exacerba divergências e contribui para a polarização social. As redes sociais exploram mecanismos neuropsicológicos, como a liberação de dopamina por meio de curtidas e comentários, criando um ciclo de recompensa que incentiva o uso contínuo. Essa manipulação psicológica, intencional e fundamentada em estudos comportamentais e neurocientíficos, pode levar à dependência digital, incluindo a nomofobia (medo de ficar sem celular ou internet).

Notícias falsas florescem nas bolhas digitais, muitas vezes alcançando maior alcance que informações verificadas, pois são projetadas para provocar reações emocionais intensas. Isso alimenta a era da pós-verdade, onde tendências pessoais e emoções prevalecem sobre fatos objetivos.

Portanto, a estupidez moral não deve ser compreendida apenas como um traço de caráter individual, mas como expressão sintomática da crise política e democrática contemporânea. Quando o discurso público é hegemonizado por certezas inquestionáveis e a responsabilidade institucional é substituída por performances digitais e convicções alimentadas pelo ressentimento, evidencia-se uma nova manifestação da estupidez: aquela que opera sob o pretexto da salvação, mas cuja ação é destrutiva. Conforme advertiu Dietrich Bonhoeffer, frente a essa modalidade de estupidez — que atua com fé cega e convicção sorridente —, nem a razão nem a contestação são suficientes. Impõe-se, assim, a necessidade de resgatar a ética do pensamento, o reconhecimento da alteridade, a coragem do dissenso e a lucidez democrática, antes que os efeitos da estupidez se tornem irreversíveis. Afinal, quando os estúpidos passam a orgulhar-se de sua própria condição e a estupidez se naturaliza no tecido social, é porque o processo de declínio civilizacional já está em curso.


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