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Com sua riqueza estilística e temática, a crônica representa uma contribuição significativa à literatura regional e ambientalista, sugerindo que, embora o rio possa "morrer", a memória e a saudade podem ser os elementos que preservem sua lenda.
***
AQUI NASCE A SAUDADE
O Menino e a Lenda
Quando criança, eu gostava de ficar ao lado do meu avô e ouvir histórias. Depois do almoço, ele se sentava na cadeira de balanço que ficava na varanda e fumava um cigarro de palha. Entre uma tragada e outra, ele falava-me de pessoas, cidades e matas que conhecera quando ainda era garoto. Um passado estranho para mim, mas que muito me fascinava. Suas histórias, narradas com maestria, faziam-me crer que assistia a um filme. Teria ele conhecido todos aqueles lugares e pessoas de quem tanto gostava de falar? Ou seria fruto de sua imaginação fértil?
Certo dia, ele me contou sobre um grande rio que vinha de muito longe para “morrer” no mar. Em suas margens, as garças voavam livres, e as palmeiras cresciam sem que ninguém as plantasse. Era o rio Parnaíba, cheio de canoas, pescadores, lavadeiras e banhistas, que um poeta da terra chamava de “Velho Monge”. As águas do Parnaíba eram como longas barbas brancas que, no inverno, tomada de cólera, invadiam as cidades ribeirinhas com suas enormes cãs, destruindo casas e matando homens, mulheres e crianças. No verão, não menos perigoso, escondia o Cabeça de Cuia, sempre pronto para tragar os banhistas e pescadores descuidados, embora preferisse as donzelas chamadas Maria para se libertar de sua maldição.
O Rio e a Morte do Menino
Meus olhos ficaram pequenos de mais para vislumbrar aquele mundo maravilhoso que meu avô tentara me transmitir. Alegria e tristeza misturaram-se em minha alma, confrontando-me com a dura realidade de que eu não era mais criança. A lenda do Cabeça de Cuia e a imagem do rio como paisagem de cinema desfizeram-se como um soco no estômago. Assim foi meu primeiro banho no Parnaíba: uma quase completa frustração, não fosse pela ponte metálica e pelos mandis que consegui pescar. O banho, a areia branca e o vento forte não me bastava. De que vale um rio sem o Cabeça de Cuia?
Algo em mim morria e sangrava como o Velho Monge no inverno. Os raios de sol caíam sobre minha cabeça, iluminando o sonho e a realidade. O menino morreu no cais da cidade, junto às lavadeiras e aos pescadores, sem que fosse arrastado pelas barbas do Velho Monge ou tragado pelo amaldiçoado Crispim.
O Homem e a Morte do Rio
O Parnaíba, muitas vezes, é um convite ao suicídio. Se meus olhos pudessem falar, contariam em lágrimas a morte dos peixes e do rio. O cais, tomado pelo rio, e a noite, sob o brilho da lua, testemunha as manchas de óleo.
Meu avô não conheceu este rio nem o homem que o fez surgir. Percebeu a morte do menino e preferiu lamentar em silêncio, imaginando o voo das últimas garças. Ah, meu querido avô! Onde quer que ele esteja, saiba que suas histórias mudaram. Os prédios carrancudos tomaram o lugar das palmeiras, os urubus substituíram as garças, e a lama — fezes e urina que a cidade diariamente vomita — ocupou o lugar das águas.
Não há mais banhos ou pescarias; não há lendas que eu possa transmitir, apenas a imensa saudade que meus filhos jamais compreenderão. O esgoto venceu o grande rio antes mesmo de ele “morrer” no mar, e toda lágrima do mundo não será capaz de salvá-lo.
Quando criança, eu gostava de ficar ao lado do meu avô e ouvir histórias. Depois do almoço, ele se sentava na cadeira de balanço que ficava na varanda e fumava um cigarro de palha. Entre uma tragada e outra, ele falava-me de pessoas, cidades e matas que conhecera quando ainda era garoto. Um passado estranho para mim, mas que muito me fascinava. Suas histórias, narradas com maestria, faziam-me crer que assistia a um filme. Teria ele conhecido todos aqueles lugares e pessoas de quem tanto gostava de falar? Ou seria fruto de sua imaginação fértil?
Certo dia, ele me contou sobre um grande rio que vinha de muito longe para “morrer” no mar. Em suas margens, as garças voavam livres, e as palmeiras cresciam sem que ninguém as plantasse. Era o rio Parnaíba, cheio de canoas, pescadores, lavadeiras e banhistas, que um poeta da terra chamava de “Velho Monge”. As águas do Parnaíba eram como longas barbas brancas que, no inverno, tomada de cólera, invadiam as cidades ribeirinhas com suas enormes cãs, destruindo casas e matando homens, mulheres e crianças. No verão, não menos perigoso, escondia o Cabeça de Cuia, sempre pronto para tragar os banhistas e pescadores descuidados, embora preferisse as donzelas chamadas Maria para se libertar de sua maldição.
O Rio e a Morte do Menino
Meus olhos ficaram pequenos de mais para vislumbrar aquele mundo maravilhoso que meu avô tentara me transmitir. Alegria e tristeza misturaram-se em minha alma, confrontando-me com a dura realidade de que eu não era mais criança. A lenda do Cabeça de Cuia e a imagem do rio como paisagem de cinema desfizeram-se como um soco no estômago. Assim foi meu primeiro banho no Parnaíba: uma quase completa frustração, não fosse pela ponte metálica e pelos mandis que consegui pescar. O banho, a areia branca e o vento forte não me bastava. De que vale um rio sem o Cabeça de Cuia?
Algo em mim morria e sangrava como o Velho Monge no inverno. Os raios de sol caíam sobre minha cabeça, iluminando o sonho e a realidade. O menino morreu no cais da cidade, junto às lavadeiras e aos pescadores, sem que fosse arrastado pelas barbas do Velho Monge ou tragado pelo amaldiçoado Crispim.
O Homem e a Morte do Rio
O Parnaíba, muitas vezes, é um convite ao suicídio. Se meus olhos pudessem falar, contariam em lágrimas a morte dos peixes e do rio. O cais, tomado pelo rio, e a noite, sob o brilho da lua, testemunha as manchas de óleo.
Meu avô não conheceu este rio nem o homem que o fez surgir. Percebeu a morte do menino e preferiu lamentar em silêncio, imaginando o voo das últimas garças. Ah, meu querido avô! Onde quer que ele esteja, saiba que suas histórias mudaram. Os prédios carrancudos tomaram o lugar das palmeiras, os urubus substituíram as garças, e a lama — fezes e urina que a cidade diariamente vomita — ocupou o lugar das águas.
Não há mais banhos ou pescarias; não há lendas que eu possa transmitir, apenas a imensa saudade que meus filhos jamais compreenderão. O esgoto venceu o grande rio antes mesmo de ele “morrer” no mar, e toda lágrima do mundo não será capaz de salvá-lo.
Autor: Francisco Miguel de Moura Júnior
Classificada em 3º lugar no Concurso de Crônicas da UBE, 1986.
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