Soneto sobre a cegueira

Este poema em forma de soneto livre, intitulado “Soneto sobre a cegueira”, é um contundente libelo crítico, que mescla sarcasmo político, desencanto social e uma reflexão metapoética sobre a função (e frustração) da linguagem poética diante do mundo contemporâneo.

A linguagem é marcada por um tom direto, ácido e irônico. Há um jogo tenso entre o poético e o prosaico, com vocábulos cotidianos que ganham densidade crítica. O poema aproxima-se da estética modernista de crítica social e da linguagem “antipoética” em seu uso contido de sarcasmo e economia verbal.

Apesar do título e do fechamento indicarem tratar-se de um soneto, o poema rompe com a estrutura clássica de forma deliberada. São versos majoritariamente livres, com variação métrica, aproximando-se da prosa poética. Esse jogo irônico entre título e forma evidencia a autoconsciência formal do poema: é um "soneto cego", que rejeita ver-se preso à tradição da forma fixa. A estrutura inacabada do soneto funciona como metáfora do colapso da razão, da lógica e da estética diante da realidade grotesca que o eu lírico denuncia.

A linguagem é desautomatizada ao rejeitar ornamentos e investir na fricção entre o sagrado e o grotesco, entre o discurso institucional e a crítica marginal. A própria noção de “cegueira” funciona como alegoria da alienação, do autoengano social, da falência da crítica.

“Soneto sobre a cegueira” é um poema forte, que não se pretende belo, mas perturbador. É politizado sem ser panfletário, poético sem ser submisso ao lirismo. Sua força está no tom insolente e na escolha de imagens que, como punhais, ferem a normalidade do discurso. Uma espécie de antipoema engajado que, ao recusar a forma do soneto tradicional, revela sua verdadeira denúncia: a cegueira do presente não cabe na moldura da forma clássica.

Boa leitura!

Soneto sobre a cegueira

Um dia o cavalão será preso
Os cães lambe-botas continuarão sarnentos
Os vendidos serão engarrafados
e esquecidos nos porões
Homens andarão sobre as águas
até afundarem num mar de baboseiras
A retórica morta pela mentira repetida
Por detrás das cortinas
os conluios são apenas joias
guardadas em Bíblias
Seria bom se as Academias
só tivessem Cabralinos
e não houvesse o suicídio inútil da palavra
num soneto sobre a cegueira.

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